Compartilhe este texto

CVM enfrenta crise com diretoria desfalcada, pressões políticas e casos polêmicos

Por Folha de São Paulo

11/08/2025 14h15 — em
Economia



BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A renúncia de João Pedro Nascimento da presidência da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) escancarou pressões políticas que cercam casos polêmicos no órgão regulador do mercado de capitais brasileiros, colocando o colegiado numa crise inédita.

Apadrinhado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), JP, como é conhecido, deixou o cargo em julho, a dois anos de terminar o mandato, aumentando o desfalque na diretoria da autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda responsável pela fiscalização de cerca de R$ 16,7 trilhões em ativos negociados no mercado, como ações, fundos de investimentos e debêntures.

Nas últimas duas semanas, a reportagem conversou com 22 pessoas, entre servidores, ex-diretores, políticos e integrantes do mercado sobre a má fase da CVM, que pode chegar ao fim do ano com apenas dois dos cinco membros do colegiado, instância que dá a palavra final sobre os principais processos para apurar e punir infrações.

Um deles comparou a situação à queda de um avião, normalmente provocada por múltiplas falhas negligenciadas. Em comum, a leitura de que a CVM passa por um dos piores momentos da sua história de quase 50 anos a serem completados em 2026.

A reportagem também ouviu críticas à falta de prioridade do governo Lula para resolver os problemas do órgão, cuja estrutura de funcionários e recursos não têm acompanhado o crescimento do mercado de capitais.

Em 2024, a CVM arrecadou R$ 1,24 bilhão com a cobrança de taxa de fiscalização e multas que foram para os cofres do governo, mas recebeu um orçamento de apenas R$ 36,3 milhões para investimentos e custeio da máquina (gastos discricionários) em 2025 -mesmo valor concedido como pré-limite para 2026.

Uma das vagas do colegiado está aberta há oito meses. O mandato do diretor Otto Lobo, que assumiu a presidência interina por ser o mais antigo do grupo, termina no final do ano -o que exigirá três novas indicações, contando com a vaga aberta pela saída de JP.

O Ministério da Fazenda rebate as críticas. Afirma que o governo aumentou o orçamento da CVM e aprovou a realização de um concurso público com 60 vagas, o que não ocorria desde 2010. O órgão tem 440 funcionários na ativa.

A Fazenda diz que trabalha para indicar o mais rápido possível diretores para as duas vagas atuais e para a que será aberta em dezembro. Os três nomes devem ser anunciados conjuntamente. A pasta afirma que vai "primar pela técnica e pela ética nas escolhas".

Na primeira semana da interinidade, Lobo causou polêmica numa decisão contra parecer técnico que acusava o investidor Nelson Tanure, o empresário Tércio Borlenghi Junior e o banco Master, de Daniel Vorcaro, de "ação orquestrada" para elevar o preço das ações da empresa de gestão de resíduos Ambipar. Procurados, os três não responderem.

Lobo e o diretor João Accioly votaram por reconhecer recurso dos envolvidos contra proposta de realização de oferta pública de ações para adquirir papéis em mãos de minoritários depois que Borlenghi Junior elevou sua participação na companhia. JP e a diretora Marina Copola, indicada por Lula, haviam votado a favor do parecer, determinando a oferta pública.

Com o empate, a questão foi decidida pelo voto de Lobo, que tinha pedido vista em junho. Apesar do voto de JP, Otto votou duas vezes, uma como diretor e outra como presidente. O voto de minerva, que não poderá ser revertido, chamou atenção do mercado.

A área técnica da CVM vê como provável que aconteça o mesmo com outro processo que trata do termo de compromisso de Vorcaro em operações consideradas fraudulentas, ligadas à negociação de cotas do fundo imobiliário Brazil Realty. JP e a diretora Copola votaram para rejeitar o acordo.

Participantes do mercado relatam que uma decisão contrária seria uma punição ao dono do Master, que conta com a aprovação pelo Banco Central da venda para o BRB (Banco de Brasília) para continuar atuando como dirigente de instituição financeira.

"A presidência interina atua com respeito à legalidade, à independência técnica e aos princípios da administração pública. Todas as decisões do colegiado são tomadas de forma fundamentada em votos públicos e transparentes, disponíveis no portal", respondeu a CVM, apontando pareceres jurídicos que respaldam a decisão.

Além da relação com os processos que envolvem o dono do Master -banqueiro que conta com apoio de influentes políticos do centrão, como o senador Ciro Nogueira (PP-PI), relator da indicação de Lobo em 2021-, a saída de JP acabou gerando uma série de versões sobre os motivos que levaram à decisão.

Publicamente, Nascimento alegou questões pessoais quando deixou o cargo no dia 18 de julho. Reservadamente, admitiu a interlocutores ter sofrido pressões insuportáveis, que fizeram com que a sua esposa lhe desse um ultimato para deixar a CVM.

"Estou em quarentena, priorizando a minha família e a minha saúde. Como já tive a oportunidade de mencionar algumas vezes, o meu ciclo como presidente da CVM se encerrou por razões pessoais. Qualquer motivação diferente desta é improcedente e especulativa", escreveu JP à reportagem.

Aliados veem um ataque coordenado contra ele a partir de casos que envolvem o Master e citam uma audiência na Câmara a dez dias da renúncia como parte do cerco montado para desgastá-lo.

A sessão ocorreu de forma tensa, com a participação de quatro deputados -dois deles do PL de Flávio Bolsonaro. Também chamou a atenção a realização da audiência em uma comissão com pouco alcance sobre temas econômicos, a de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

O presidente, deputado Filipe Barros (PL-PR), afirma que um dos escopos de atuação é a defesa da soberania, o que inclui a econômica. Barros nega ter havido hostilidade e afirma que JP, naquele momento, já indicara a intenção de deixar a CVM.

"No dia da audiência, um pouco antes, ele falou para mim que estava muito cansado, que o salário como diretor era baixíssimo e que ele estava optando por ficar um pouco mais com a família", diz.

Entre as versões, servidores também apontam desgaste com ataques que partiram de Vladimir Timerman, dono da Esh Capital. À reportagem Timerman diz que JP moveu uma medida cautelar contra ele e pediu a abertura de inquérito. Segundo ele, um dos motivos foi ter dado publicidade ao fato de que o irmão de JP, José Lúcio Nascimento, trabalha no BTG Pactual, do banqueiro André Esteves.

Funcionário do BTG desde 1999, José Lúcio participou de reunião entre representantes do banco com o irmão em setembro de 2022. Procurado, o BTG diz que atualmente ele é cochefe de produtos e não tem cargo de diretor estatutário.

Durante a audiência, JP foi confrontado sobre a eventual participação do irmão em decisões sobre o BTG. O deputado Márcio Marinho (Republicanos-MA) chegou a pedir justificativa para o que chamou de "falha grave de percepção ética".

"Meu irmão não é e nunca foi diretor do banco, nunca ocupou nenhum assento estatutário ou de conselheiro da instituição", respondeu JP.

Um funcionário da CVM, que defende uma autarquia técnica e insulada para se proteger de interferência política, diz ter dificuldades de ver JP apenas como vítima de pressões. Para ele, a aproximação de JP com políticos acabou cobrando o preço.

Com a indicação atribuída a membros influentes do centrão e do Judiciário -entre eles o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux- Lobo tem buscado apoio político para continuar na presidência, o que lhe garantiria mais dois anos no comando da CVM. Fux nega ser padrinho do diretor.

Assim como Otto, Accioly tem feito um périplo por instituições do mercado, pedindo apoio para presidir a CVM. Autoridades afirmam haver consenso no governo de que nenhum dos dois será alçado a presidente. Hoje, Copola é uma das favoritas para o cargo.

"É fundamental que o colegiado seja rapidamente recomposto, mas a solução definitiva para o problema requer, também, que a CVM tenha os servidores e recursos que precisa para cumprir seu relevante mandato legal", diz Gustavo Gonzalez, ex-diretor da CVM.


Siga-nos no
O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

ASSUNTOS: Economia

+ Economia