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'Brasil regrediu, e governo vai sair gastando', lamenta um dos pais do teto de gastos

Por Folha de São Paulo

23/10/2021 4h06 — em
Economia



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Considerado um dos pais do teto de gastos, o economista Marcos Mendes, 56, avalia que o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mudou de tática nesta semana. Trocou os balões de ensaio, em que mandava sinais ao mercado de abandono da prudência fiscal, pela simples ruptura, ao deixar claro o drible ao teto de gastos.

A decisão do governo de mudar a regra que corrige o teto, de forma retroativa, abrindo espaço para mais gastos, é vista por Mendes como o fim da medida constitucional que ele ajudou a criar. O saldo disso será um horizonte de mais incertezas na economia, redução de investimentos, aumento da inflação e mais dificuldade de superar a crise, diz ele, que é pesquisador associado ao Insper.

Na visão do economista, as movimentações recentes do governo contra o teto sinalizam uma mudança de regime fiscal, com a volta para uma antiga prática —gastar sem controle. "Entrou dinheiro, vamos encontrar algo para gastar e vamos gastar mesmo o que não tivermos. Não vamos ter nenhuma ferramenta contrária a esse tipo de irresponsabilidade", afirma.

O cenário, segundo ele, se reflete nas reações que ocorreram nos últimos dias: queda da Bolsa, alta do dólar, renúncia de secretários do ministério da Economia e um aumento do temor, por parte dos analistas, de que o governo continuará tomando medidas, como a criação do Auxílio Brasil, para buscar aumentar a popularidade do presidente até o ano que vem —quando Bolsonaro deve tentar a reeleição.

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PERGUNTA - Com toda a turbulência que ocorreu nesta semana, o ministro Paulo Guedes chegou a explicar que a movimentação do governo se tratava de uma 'licença para gastar fora do teto'. Na prática, o teto de gastos ainda existe?

MARCOS MENDES - Não, ele foi rompido, perdeu totalmente qualquer potência que tinha para guiar a política fiscal.

O grande fato que ocorreu na quinta-feira (21) foi que se estabeleceu uma mudança de regime fiscal. O Brasil regrediu ao regime anterior, em que a regra era gastar o máximo que você puder. Entrou dinheiro, vamos encontrar algo para gastar e vamos gastar mesmo o que não tivermos. Não vamos ter nenhuma ferramenta contrária a esse tipo de irresponsabilidade. Em vez de o governo suavizar os ciclos econômicos, ele vai passar a fazer o oposto.

O teto era uma forma de segurar a despesa e já vinha dando resultados, a receita estava melhorando. Rompendo isso, o governo agora vai sair gastando. A economia vai ganhar volatilidade e mais incerteza.

P. - O que podemos esperar deste novo regime fiscal?

MM - É um regime que só sobrevive quando o governo aumenta a carga tributária, mas ela já está no limite. Para cada porcentagem de carga a mais, mata-se uma série de negócios na economia, cria-se pesos mortos e impede-se o florescimento de negócios.

P. - A fatura do drible ao teto de gastos, então, vai chegar em breve?

MM - Sim. Já estamos com a dívida pública em um patamar elevado e isso facilmente sairia de controle. Esse novo regime gera mais juros, risco de aumento tributário, aumento da incerteza e redução de crescimento do país.

Como a capacidade de aumentar tributação e endividamento se esgotou, a tendência é que a inflação suba mais e eles comecem a fazer gastos por meio de bancos públicos. O saldo vai ser mais volatilidade, menos geração de empregos e mais inflação.

P. - Era possível reformular o Bolsa Família sem precisar abrir mão do teto?

MM - Quando se fala em programa social, o debate é sempre quanto vai custar e quantos serão atendidos. Mas um programa desse tipo envolve muito mais detalhes, como bom cadastro e estrutura de dados, busca ativa das pessoas em situação vulnerável.

O Brasil tem tudo isso já montado, poderia ser construído um programa focado nos mais pobres e com uma poupança para as pessoas que estão sujeitas à volatilidade de renda, em situações, como a pandemia. Um programa eficiente, a um custo mais baixo, seria possível, até pela revisão de programas desenhados antes e que hoje não fazem mais sentido.

Existem debates na sociedade, com sugestões de programas que seriam mais baratos e mais eficazes. O que governo quer fazer tem um desenho ruim e sem detalhes definidos. Há um potencial enorme de conflito entre os vários programas dentro desse Auxílio Brasil, que ainda vão precisar ser regulamentados.

A opção do presidente foi por anunciar alguma coisa que dê voto e fora da capacidade de pagamento do Estado.

P. - O ruído nos mercados nesta semana se deu por esse acúmulo de incertezas?

MM - É preciso ter uma lista de prioridades e respeitar a capacidade de financiamento do Estado. Aquele dinheiro dado em transferência de renda vai representar mais imposto ou mais inflação, que lá na frente, vai tirar dinheiro dessas pessoas, de todo modo?

Não existe um governo que só faça o bem e um mercado que não queira pagar R$ 400 aos mais pobres. Os investidores só não vão deixar o governo fazer o que ele quiser, para depois a inflação subir e o dinheiro deles perder valor.

P. - O governo já vinha dando sinais de que trocaria a responsabilidade fiscal por projetos que aumentem a popularidade do presidente até a eleição do ano que vem. Os analistas foram ingênuos ao não perceberem antes que algo assim aconteceria?

MM - O que vinha acontecendo desde o ano passado eram balões de ensaio. Quando queriam criar um programa, que tiraria os investimentos públicos do teto de gastos, havia uma tensão no mercado, vários economistas criticavam e o governo recuava. Com a tentativa de calote de precatórios foi a mesma coisa.

Mas desde que o centrão capturou a coordenação política, o interesse do governo prevaleceu sobre o esforço da Economia. O presidente também entrou em desespero, ao ver a eleição chegando e sua popularidade caindo. Antes, havia um pudor de ser tachado de 'coveiro do teto de gastos'. Isso acabou.

P. - Se os sinais recentes do governo desagradam, podemos esperar uma retirada de apoio do mercado ao governo?

MM - Não acredito que exista mercado aliado ao governo. O dito mercado são várias entidades, empresas, lojas, cadeias de supermercado, não apenas o mercado financeiro. Não existe uma entidade que é favorável ou contrária a um presidente, mas as pessoas fazem contas.

Em um ambiente de mais incerteza, as empresas investem menos, diminui o horizonte. Se há chances de novas guinadas bruscas, como a que vimos nesta semana, todo mundo se protege para não perder dinheiro. Isso reduz investimentos e inovação. A única atratividade que o Brasil vai ter vai ser aumentar muito os juros e tentar atrair algum capital especulativo, que fica aqui um pouco e depois se vai embora.

P. - Na eleição de 2018, havia um discurso de que o ministro Paulo Guedes poderia transformar o presidente Bolsonaro em um liberal. Três anos depois, podemos dizer que foi Bolsonaro quem transformou Guedes?

MM - Em primeiro lugar, o presidente tinha um longo histórico corporativista e estatizante, nada levava a crer que ele teria interesse por uma plataforma liberal.

Em segundo lugar, no Brasil, temos um corredor estreito para sair da estagnação e crescer, que é fazer uma aliança interpartidária majoritária no Congresso, por meio de uma articulação eficiente, objetiva e com projetos de qualidade. Ao mesmo tempo, é preciso gerir os interesses de curto prazo, em um Congresso povoado por interesses particulares e com diferentes bancadas com objetivos específicos.

Quando o sistema gera esse tipo de representação, o interesse coletivo —que leva a uma inflação baixa, com estabilidade fiscal —etc acaba vindo. O caminho é sempre conseguir não se entregar totalmente a esses interesses de curto prazo.

P. - E o governo atual falhou em construir essas pontes para o interesse coletivo?

MM - O presidente, no começo do mandato, optou por confrontar o Congresso em vez de formar uma base. O Legislativo se antecipou e capturou o Orçamento. Conforme a situação política do presidente se deteriorou, ele entregou o comando do governo ao Congresso, e o centrão tomou conta da articulação política. Passaram a distorcer as propostas de reformas e a política econômica perdeu o rumo por completo.

Esse desmonte do teto de gastos é uma consequência disso. O que tem ditado a política econômica é o desejo do centrão de acumular votos e Bolsonaro é refém disso, por ter perdido o controle do governo.

P. - E que papel o ministro Paulo Guedes deve assumir agora, já que o de 'superministro' não cabe mais a ele?

MM - Guedes trabalhou em um ambiente difícil, em um governo de baixa de qualidade. Já era complicado antes. Só por resistir alguns anos já tem algum mérito. Mas faltou objetividade nas propostas da equipe econômica.

A cada momento, ela vinha com uma ideia genial: reduzir o número de municípios, recriar a CPMF, montar um fundo de empresas estatais para conseguir recursos. Essas ideias eram divulgadas, mas as propostas não apareciam.

Ficou famoso um meme do ministro, com a frase 'semana que vem eu entrego'. A regra número um do gestor público é não anunciar nada antes de pronto, só depois de ter uma proposta desenhada, conversada com os atores políticos. Houve muito voluntarismo e faltou pé no chão, para desenhar as propostas e ter diagnósticos corretos.

P. -A debandada de secretários do Ministério da Economia reforça essa percepção de falta de rumo?

MM - Se tem uma coisa que é comum entre os secretários que se demitiram é o alto grau de profissionalismo e de espírito público. São servidores dedicados e que sabiam o que estavam fazendo. Mas bateu no limite do aceitável.

O [ex-secretário especial do Tesouro e Orçamento] Bruno Funchal desenhou todo um sistema contábil de aperfeiçoamento das contas dos municípios; o [ex-secretário-adjunto do Tesouro Nacional] Rafael Araújo entende tudo de Fies e dos detalhes das contas do Tesouro; o [ex-secretário do Tesouro Nacional] Jeferson Bittencourt conhece muito de bancos públicos. Todos eles são funcionários exemplares, saíram para não ter de concordar com o que ainda está por vir.

P. - O ministro da Economia ficou mais fraco nos últimos dias?

MM - Guedes está muito fragilizado. Ainda faz diferença se ele continua ou não no comando da pasta, mas a permanência ou saída dele se tornou menos relevante.

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RAIO-X:

MARCOS MENDES, 56

Economista e pesquisador associado do Insper, também foi assessor especial do antigo Ministério da Fazenda. É autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'


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