Boeing entrou na Embraer e contratou engenheiros no nosso quintal, diz CEO da fabricante brasileira
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Ficou para trás." É o que diz à Folha de S.Paulo o CEO da Embraer, Francisco Gomes Neto, sobre a briga na Justiça dos EUA travada entre a companhia e a Boeing depois que a fabricante americana rompeu o processo para adquirir a linha de aviação comercial da empresa brasileira.
Há quase três meses, a Corte Arbitral de Nova York decidiu que a companhia americana teria de pagar US$ 150 milhões (R$ 913 milhões) à Embraer por causa do rompimento. Segundo Gomes Neto, o valor já foi quitado.
Em outra desavença, a Boeing foi acusada de capturar sistematicamente engenheiros da Embraer e de outras empresas da indústria brasileira. "Nós ficamos muito chateados com essa situação", diz Gomes Neto.
"A Boeing, durante o processo do potencial acordo [para aquisição do braço comercial da brasileira], entrou na Embraer, conheceu os engenheiros, sabia as modalidades, quem era bom. Depois que não deu certo, ela [a Boeing] põe o escritório de engenharia no nosso quintal para contratar pessoas específicas dentro da companhia", completa. Em outubro de 2023, a Boeing anunciou a abertura de seu Centro de Engenharia e Tecnologia no Brasil, em São José dos Campos (SP), mesma cidade onde está sediada a empresa brasileira.
Procurada pela Folha de S.Paulo, a Boeing disse que, como empresa global, está comprometida em atrair e desenvolver os melhores talentos nos EUA e em todo o mundo para atender à demanda por produtos e serviços aeroespaciais. "Temos orgulho de nossos mais de 90 anos de parceria com o Brasil no fomento à inovação aeroespacial, sustentabilidade e segurança. O país possui um rico histórico de aviação, universidades técnicas de ponta e um forte ecossistema de engenharia."
Neste sábado (7), a privatização da Embraer completa 30 anos, período marcado por lançamentos importantes da empresa, como a família de aviões comerciais E-Jets e o avião militar C-390, encomendado por governos de países como Coreia do Sul e Portugal.
De acordo com Gomes Neto, a fabricante brasileira tem chances de alcançar ainda neste ano um recorde histórico de receita. Ele diz que a companhia tem potencial para ser uma empresa de mais de US$ 10 bilhões de receita até o fim desta década.
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PERGUNTA - A Embraer já cogita fazer aviões maiores. Em que etapa está esse plano? Seria um avião para a próxima década?
FRANCISCO GOMES NETO - Eu não falei que a Embraer está cogitando fazer um avião maior. O que eu tenho dito, e reforço aqui, é que a Embraer, como fabricante de aviões, está sempre estudando alternativas e novos produtos.
A gente não tem nenhum plano neste momento de fazer um avião para competir com a Boeing, com a Airbus, com o que quer que seja. O que nós temos feito é investir em tecnologias para que a gente, se um dia decidir por um novo produto, esteja pronto para isso. Temos tecnologias disponíveis dentro de casa.
Eu acho que o momento da Embraer é muito positivo. Temos um portfólio de produtos moderno, atualizado e competitivo. Isso vale para os jatos comerciais da família E2, para os jatos executivos e para o C-390 militar. Com esses produtos, nós temos uma chance neste ano de, talvez, bater o recorde histórico de receita da Embraer.
P - No Media Day (evento para jornalistas) realizado pela Embraer neste ano, o sr. foi questionado sobre a possibilidade de a empresa produzir uma aeronave que compita com o 737 Max, da Boeing, e com o A320, da Airbus. O sr. respondeu que a Embraer tinha capacidade de fazer algo maior e que estudos estavam sendo feitos. Esses estudos englobam, então, a possibilidade de haver a produção de um avião comercial maior ou não é isso?
FGN - São estudos de mercado. Pode ser um avião executivo, pode ser um avião comercial, pode ser um avião militar. Nós não temos um projeto definido, não vamos fazer esse ou aquele avião. Esses são os estudos que nós fazemos, e é o nosso trabalho fazer estudos mesmo.
A gente tem um plano muito robusto até 2030, mas a partir de 2030 a gente está pensando o novo produto da Embraer, ou os novos produtos da Embraer. Não temos essa definição no momento.
P - A Embraer quase chegou a vender a parte de aviação comercial para a Boeing, o que acabou não indo para frente. Recentemente, no caso da arbitragem nos Estados Unidos, a Embraer conseguiu uma vitória, e a Boeing vai ter que pagar US$ 150 milhões...
FGN -Já pagou.
P - O mercado falava que o prejuízo que a Embraer teve foi maior do que os US$ 150 milhões. O resultado na Justiça americana foi decepcionante?
FGN -A gente sempre esperava mais, claro. Mas ficamos satisfeitos com o resultado. Eu acho que foi uma compensação, pelo menos parcial, do que a gente gastou. E o mais importante é que a gente virou uma página e agora estamos focados em fazer a companhia continuar crescendo. Esse é um tema que ficou para trás.
Vamos ter um ano bom em 2024. Vamos ter o ano de 2025 ainda melhor e assim por diante. O potencial da Embraer é ser uma empresa de mais de US$ 10 bilhões de receita até o final desta década.
P - Há um processo na Justiça brasileira em que algumas entidades da indústria acusam a Boeing de praticar concorrência predatória e capturar sistematicamente engenheiros da Embraer e de outras empresas.
FGN -Nós ficamos muito chateados com essa situação, porque a Boeing, durante o processo do potencial acordo [para adquirir o braço comercial da brasileira], entrou na Embraer, conheceu os engenheiros, sabia as modalidades, quem era bom, quem era melhor, conheceu tudo isso. Depois que não deu certo, ela [a Boeing] põe o escritório de engenharia no nosso quintal, em São José dos Campos, para contratar pessoas específicas dentro da companhia, não só da Embraer, mas principalmente da Embraer.
É óbvio que a gente não gostou dessa postura, mas nós internamente também criamos várias ações internas de retenção dos nossos talentos, a gente tem vários projetos em andamento. Foi uma situação, eu diria, mais crítica. Teve um momento mais difícil no início, mas eu acho que agora a situação está bem mais controlada.
P - Quais são essas ações para reter talento?
FGN -São novos projetos, melhoria da comunicação, várias ações de recursos humanos que a gente tem feito. Engenheiro gosta de projeto, ele precisa ter desafio.
A gente tem várias coisas, como o eVtol [veículo de pouso e decolagem na vertical, também conhecido como carro voador], por exemplo, que é um projeto disruptivo. Nós temos lá mais de 600, 700 pessoas trabalhando nesse projeto "full time". São ações desse tipo.
Claro, a gente olha a remuneração, a gente olha principalmente os projetos futuros. E a gente conseguiu, assim, melhorar essa situação bastante.
P - Nos resultados do terceiro trimestre deste ano, a Embraer divulgou lucro líquido de R$ 1,18 bilhão, mas relatou uma previsão menor para as entregas de aeronaves comerciais. Há novos riscos? O que mudou?
FGN -Estamos em um momento em que temos uma carteira de pedidos firmes de US$ 22,7 bilhões. É a mais alta nos últimos nove anos. Apesar das dificuldades econômicas, as nossas ações valorizaram, somente neste ano, mais de 150%.
A gente está enfrentando dificuldades na cadeia de suprimentos, por isso a redução da expectativa de entregas de aviões comerciais. Mas, apesar disso, a gente espera entregar um resultado financeiro melhor do que a gente esperava no começo do ano.
De modo geral, a cadeia de suprimentos vem melhorando ano a ano. Mas tem um grupo de componentes, de equipamentos que a gente ainda tem muita dificuldade, principalmente motores e peças que a gente chama de aeroestrutura. São peças que vão na fuselagem, nas asas do avião e nos interiores. Esses componentes têm sido os mais críticos. Eles não chegam na quantidade que a gente precisa e chegam muito atrasados, dificultando o nosso processo produtivo.
P - O Brasil e a América Latina têm uma participação menor na receita da Embraer se comparado à Europa e à América do Norte, por exemplo. O que falta para as companhias aéreas brasileiras comprarem mais aviões da Embraer? Há algum entrave?
FGN -É verdade. Vou pegar a França e os Estados Unidos, onde tem as nossas grandes concorrentes, a Airbus e a Boeing. Nesses lugares, a quantidade de aviões produzidos localmente, comparada com a quantidade de aviões que voam no país, é de mais de 40%. Aqui no Brasil, é menos de 15%.A gente não tem aviões grandes como têm a Boeing e a Airbus, mas, no Brasil, somente uma companhia aérea [a Azul] voa com avião da Embraer. Se as três voassem, esses 15% seriam muito maiores.
A gente tem tentado convencê-las da vantagem. Eu acho que é uma questão de tempo.
RAIO-X | FRANCISCO GOMES NETO, 66
Assumiu a posição de CEO da Embraer em maio de 2019. É formado em engenharia elétrica com especialização em administração de empresas e tem MBA em controladoria e finanças. Anteriormente, esteve à frente do grupo Marcopolo. Também foi CEO para as Américas da empresa Mann+Hummel, que fornece equipamentos de filtragem para diversas indústrias, e presidente da Knorr Bremse Brasil, empresa de sistemas de controle de veículos comerciais
ASSUNTOS: Economia