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Projeto vai replicar experimentos de cientistas brasileiros para checar sua eficiência

Por Agência O Globo

22/04/2018 0h24 — em



SÃO PAULO - O gaúcho Olavo Amaral lembra que um colega o chamou de “irreverente” há alguns anos. Amaral, professor do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mencionou que gostaria de criar uma rede de cientistas que se encarregasse exclusivamente de repetir os trabalhos realizados por outros acadêmicos — algo que, no jargão dos laboratórios, é conhecido como "replicação” — para comprovar se estão corretos. O interlocutor se surpreendeu:

— Ele disse que a ideia era muito fora da caixinha — conta Amaral. — Na verdade, reproduzir outros trabalhos é a coisa mais quadrada da história da ciência.

A ideia do professor saiu do papel com a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, recém-lançada por ele. A proposta é a mesma apresentada anos atrás: criar uma rede de laboratórios que repita experimentos realizados por outros pesquisadores brasileiros. O foco são as pesquisas biomédicas publicadas em revistas científicas. O projeto é financiado pelo Instituto Serrapilheira, instituição privada de incentivo à ciência que deve investir R$ 145 mil no primeiro ano de trabalho.

O processo de replicação é essencial para comprovar se as descobertas feitas nos trabalhos originais são realmente válidas ou se foram fruto de erro, fraude ou mero acaso. A intenção de Amaral é, em parte, criar um mecanismo de diagnóstico da qualidade da ciência biomédica no país — e reunir dados para pensar em como melhorar as pesquisas nacionais.

O conceito da reprodutibilidade é uma das bases do método científico. Para ser considerada verdadeira, uma descoberta precisa ser confirmada por pesquisadores independentes, que não participaram do experimento original. É essa a trilha natural da ciência: novas hipóteses são confirmadas ou refutadas e, aos poucos, o conhecimento avança. Os cientistas costumam dizer que o erro e sua correção fazem parte do método científico. A reprodutibilidade, no entanto, não é apenas um atestado de veracidade. É preciso que os cientistas sejam capazes de repetir uma descoberta para que ela seja útil. Trabalhos não reprodutíveis são inúteis.

— De nada adianta eu demonstrar que uma molécula curou os tumores de dez ratinhos em um laboratório no quinto andar da UFRJ — diz Amaral. — Para ela ser considerada eficiente, vai ter de fazer o mesmo em outros ratinhos, em outros laboratórios, em qualquer parte do mundo.

Há duas questões que envolvem essa história. A primeira é que poucos cientistas querem se dedicar ao trabalho de replicação. Para a maioria, é mais prestigioso se concentrar em trabalhos próprios e na busca de descobertas originais. A segunda é que esse desdém pela replicação cria uma situação paradoxal: não há muitas estatísticas a respeito da confiabilidade da ciência, mas existe a impressão, entre os próprios cientistas, de que boa parte das descobertas anunciadas não é replicável. A suspeita é antiga — já em meados do século XIX, o matemático Charles Babbage escreveu sobre sobre o assunto:

— Esse debate só ganhou fôlego há cerca de dez anos — explica Marcos Munafò, professor de psicologia experimental da Universidade de Bristol.

Um alerta foi lançado em 2005 pelo professor John Ioannidis, da Universidade Stanford, num artigo intitulado “Por que a maior parte dos resultados das pesquisas é falso?”. Desde então, acumulam-se evidências em favor de sua tese. Em 2014, levantamento feito por pesquisadores da Universidade de Edimburgo concluiu que 85% das pesquisas biomédicas publicadas não podiam ser replicadas. Em 2016, um relatório da farmacêutica Angem constatou que, de 53 estudos considerados “marcos” da pesquisa do câncer, só seis podiam ser reproduzidos.

Por vezes, um trabalho não pode ser repetido porque foi mal descrito: não há dados suficientes para que pesquisadores independentes façam a replicação. Em outros casos, a descoberta está simplesmente errada ou é fraudulenta e ninguém se deu ao trabalho de contestá-la.

Hoje, a maior parte dos cientistas parece convencida de que há um problema. Segundo pesquisa feita pela revista Nature no ano passado, 90% dos pesquisadores concordam que seu campo de atuação sofre com uma “crise de reprodutibilidade”. Mas isso não significa que a ciência erra sempre ou que deve ser negada. Os dados mostram apenas que é possível fazer ajustes. Segundo Amaral, ao longo do tempo, a ciência se autocorrige, e dados errados ou exagerados são refutados. Sua proposta é tornar esse processo de confirmação mais rápido e sistemático:

— Em teoria, isso pode aumentar a velocidade com que a ciência avança.

Por ora, a equipe de Amaral ainda é pequena, formada por ele e dois pós-doutorandos. Ao longo deste ano, os três vão selecionar os métodos que serão utilizados nas reproduções. Serão selecionados entre 50 e 100 estudos nacionais, por sorteio, para serem analisados. A partir do ano que vem, quando os trabalhos de reprodução começarem, a equipe de Amaral será acompanhada por laboratórios. Cada experimento será reproduzido por três laboratórios parceiros. Segundo Amaral, o Serrapilheira vai se encarregar de financiar também essa segunda fase do projeto. O valor a ser investido nessa etapa ainda não foi determinado, mas os pesquisadores estimam algo em torno de R$ 1 milhão.

— A ideia também é estimular que os cientistas sejam mais rigorosos — analisa Amaral. — Não queremos atuar como polícia, mas saber que há alguém olhando pode incentivar os pesquisadores a serem mais cuidadosos.


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