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Dona da água no Tocantins, Odebrecht Ambiental entra na mira da Lava-Jato

Por Agência O Globo

25/10/2016 5h27 — em
Brasil



CARRASCO BONITO (TO) e SÃO PAULO. Cheiros de coco queimado, terra seca, suor e esgoto juntam-se para formar um retrato opaco da vida do lavrador José Vieira da Silva, de 72 anos, em Carrasco Bonito, interior do Tocantins. Ele e a esposa, dona Deusamar, contam com uma ligação de água no terreiro da casa de pau a pique para lavar roupa e fazer comida para dois. Moram na zona rural de uma cidade de 3,2 mil habitantes, mas no fim de mês a conta de água na porta de casa parece de cidade grande: chega a R$ 50.

— No interior do Maranhão tinha isso, não. Lá a gente apanha água e num gasta. Não é que nem aqui — lamenta o agricultor, que há cinco anos mudou-se com a esposa para uma cidade onde o reajuste da tarifa de água avança sem crise (10,9%, em 2015, e 17,1%, em 2016).

— A água que Deus deu pra gente foi de graça. Tem vizinho de casa igual a nossa, que paga é R$ 100 todo mês — completa dona Deusamar, que ganha um terço deste valor semanalmente, como quebradeira de coco babaçu.

Quem leva um naco da aposentadoria do seu José não é a prefeitura de Carrasco Bonito nem o governo do Tocantins: é a Odebrecht Ambiental, por meio de sua empresa Saneatins, concessionária de água de 47 cidades do estado (ou 80% da população). Apenas no ano passado, ela faturou mais de meio bilhão de reais nos contratos com consumidores e governo. Documentos da Lava-Jato trazem os primeiros indícios do preço pago para garantir a supremacia da água justamente onde ela parece fazer mais falta.

Uma planilha apreendida pela Polícia Federal mostra que contratos da Odebrecht com três fornecedoras — a DAG Construtora, SPE Sanear e Construtora Saga — serviam para viabilizar pagamentos de interesse do grupo baiano, como doações eleitorais e pagamentos em espécie. A concessionária de água da Odebrecht no Tocantins é citada. As três empresas são vinculadas a pagamentos da Saneatins ao lado de uma observação: "terrenos, pagamentos diversos e 450.000 (espécie)".

O mesmo documento menciona outros contratos da Odebrecht com a DAG Construtora — empresa onde ele foi apreendido —, cujo objeto é locação de equipamentos. A PF suspeita se tratar de "contrato superfaturado a fim de possibilitar o repasse de valores a título de doação". Em outro pagamento da Odebrecht para a DAG, o autor da planilha, ainda não identificado, registrou: "ver contrato, majorado para doação eleitoral e em R$", seguido do comentário: "com certeza 440.000 + 670.000 sai daqui (espécie ou doação, acho que doação)". O papel faz distinções para cada despesa: "valor faturado x medido x desviado".

Por trás das três parceiras da Odebrecht contratadas pela Saneatins está uma pessoa: Demerval Gusmão, amigo e parceiro de negócios de Marcelo Odebrecht. A Lava-Jato já sabe que as empresas também eram porta de saída para ocultar atividades ilícitas da empreiteira, em atuação paralela ao setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, que ficou conhecido como o setor de propinas.

A DAG Construtora foi usada pela empreiteira para e para comprar um prédio . A empresa também pagou pelo menos , acusado de ser operador de propinas para dirigentes do PMDB, em 2009 e 2010.

A relação da DAG e da Saga com a Saneatins é forte a ponto de a concessionária de água citá-la como responsáveis por parte dos ativos da companhia na demonstração financeira encaminhada à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Em dezembro de 2014 eram R$ 30,5 milhões e, em dezembro de 2015, R$ 12,4 milhões — o que significa ter havido uso por parte da Saneatins de pelo menos R$ 18 milhões provenientes das duas empresas no ano passado.

A Odebrecht está perto de fechar um acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República (PGR) e tenta vender o controle da Saneatins a um fundo canadense. A Odebrecht e Demerval Gusmão informaram que não comentam a relação entre as empresas e a Saneatins.

Desde 2012, o Fundo de Investimentos do FGTS (FI FGTS) tem participação societária na concessionária de água da Odebrecht. A aprovação da operação foi citada pelo ex-vice presidente da Caixa, Fábio Cleto, como objeto de pagamento de propina de quase R$ 1 milhão ao ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que nega ter recebido o valor. Cleto disse ter embolsado R$ 36 mil pela operação. A Odebrecht não quis comentar o caso.

O Programa Saneamento para Todos é uma das principais fontes de recursos da Saneatins — por meio da Caixa, repassou R$ 539,3 milhões para universalizar o acesso a esgoto no estado, realidade ainda distante (menos de um quarto da população tem hoje acesso ao serviço). Do total contratado, apenas R$ 284,2 milhões tinham sido desembolsados pela empresa até 2015, o que significa R$ 255,1 milhões para desembolsar nos próximos três anos.

O Ministério Público do Tocantins coleciona processos que investigam a relação da Saneatins com seus consumidores: são procedimentos para apurar aumento ilegal da tarifa de abastecimento, cobrança de tarifa mínima quando o serviço está suspenso e cobrança abusiva pela instalação de equipamentos que ligam a rede de esgoto às residências. Há suspeita de que o órgão responsável por regular a atuação da empresa no estado simplesmente não atua.

— Existem termos de ajustamento de conduta assinados, mas ainda há muito a ser feito. A impressão é que a legislação criada para viabilizar a atuação da Saneatins prevê obrigações para consumidores e quase nada para a empresa — analisa a promotora Kátia Chaves Gallieta. A Odebrecht não comentou.

Prefeitos se rebelam contra as cobranças e tentam na Justiça reverter o poder dado pelo estado à empresa. Tocantinópolis conseguiu que a Justiça declarasse ilegal a tarifa de 80% da conta de água cobrada pela empresa pela prestação de serviço de esgoto. Sampaio municipalizou o serviço de água e esgoto. O tema foi alvo de debates acirrados na campanha municipal de Carrasco Bonito e Buriti.

Quando a Assembleia Legislativa do Tocantins tentou instaurar uma CPI para investigar a supremacia da Saneatins no ano passado, a empresa suspendeu todos os contratos com fornecedores do estado, como forma de pressão. A iniciativa não durou um mês e a CPI foi suspensa por motivo formal (não atendimento à proporção de composição partidária). Não há sinal de que voltará à carga. Agora, mudanças no bolso do seu Zé e da dona Deusamar parece só depender, mesmo, do avanço das investigações da Lava-Jato.


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