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'A Voz Humana', curta de Almodóvar, destaca Tilda Swinton na Mostra de SP

Por Folha de São Paulo

19/10/2021 21h06 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Tudo começou com Jean Cocteau. Em 1929, o artista francês de mil faces -poeta, escritor, desenhista, dramaturgo, cineasta- escreveu a peça "A Voz Humana", imaginando uma mulher sozinha, no palco, falando ao telefone com seu marido, que a havia abandonado por um novo amor. Cocteau descia à banalidade para alcançar a expressão máxima da voz de uma atriz. Uma mulher, um adereço, uma cadeira.

A simplicidade da cena, montada pela primeira vez no palco da Comédie Française, em Paris, em 1930, com a atriz belga Berthe Bovy no papel-título, se juntava à modernidade do telefone, com o qual a sociedade ainda se acostumava. O público não escutava, em momento algum, a voz do homem do outro lado da linha. No livro, suas falas são eclipsadas por longas reticências. Na peça, são escondidas pelo silêncio.

Segundo Cocteau, a obra representou mais um passo à incompreensão entre os surrealistas, que, incomodados com suas muitas fases artísticas, o chamavam de "Cocktail de Cocteau". Seus epítetos se multiplicavam nos cafés de Paris, de "Príncipe Frívolo" a "L'Enfant Terrible", expressão conhecida até hoje. De apelido em apelido, a voz de Cocteau atravessaria o tempo, inspirando grandes artistas, como o cineasta Pedro Almodóvar.

Até o dia 30 deste mês, a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibe, em diferentes salas da cidade, o curta "A Voz Humana", adaptação de Almodóvar da peça de 1930.

De acordo com Renata de Almeida, diretora da Mostra, o filme, o primeiro de Almodóvar em inglês, é um presente para os fãs do cineasta. "É uma reunião de todas as características dele. Tem uma mulher à beira de um ataque de nervos, cores fortes e relacionamentos conturbados", afirma. A britânica Tilda Swinton foi escolhida para interpretar a personagem. Já no primeiro plano, ela aparece com um vestido Balenciaga armado, com um tom vermelho que contrasta com o fundo cinza de um set de filmagens.

Durante o filme, sabemos que o apartamento da mulher sem nome fica em um estúdio, deixado por ela apenas em um momento, quando vai até uma loja para comprar um machado, com o qual destrói o paletó do marido.

No lugar do telefone, Swinton aparece de "air pods". "Gosto de como ele usa os ruídos da conversa. Queremos saber o que o homem está dizendo. E, por ser num estúdio, a relação entre cinema e teatro é explícita", afirma Almeida.

Gravado durante a pandemia, o filme estreou no Festival de Veneza do ano passado, sendo a realização de um sonho antigo de Almodóvar. Em "A Lei do Desejo", de 1987, o diretor inseriu um trecho da peça de Cocteau no roteiro. Já "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de 1988, nasceu como uma adaptação experimental do texto. Em "A Voz Humana", Almodóvar acena à contemporaneidade, com um destino alternativo para a mulher abandonada. No filme, a languidez de Swinton, uma mulher alta e de tez pálida, convive com decisões impulsivas.

Não é a primeira vez que a peça de Cocteau ganha uma adaptação cinematográfica. Em "L'Amore", de 1948, o cineasta italiano Roberto Rosselini criou sua versão para o enredo, estrelado por Anna Magnani. Muito antes, porém, o próprio Cocteau se juntou ao compositor francês Francis Poulenc para criar uma tragédia lírica em um ato.

Na noite desta segunda-feira, a soprano lírica Rosana Lamosa subiu ao palco do Theatro Muncipal de São Paulo para o primeiro ensaio geral da ópera "A Voz Humana", de Poulenc, que estreia na próxima sexta-feira. Lamosa se posicionou de frente para a orquestra, a fim de repassar o monodrama. "Aproveitem que hoje ela está cantando para vocês. No próximo ensaio, ela estará de frente para a plateia", brincou o maestro Alessandro Sangiorgi.

Durante o ensaio, o canto de Lamosa esteve ora rente à fala, ora em notas altas, como o dó natural, alcançado quando a personagem quase enlouquece. "Como cantora lírica, tenho que me preparar vocalmente, mas as pausas fazem com que a personagem seja muito dramática", conta ela.

Coube à soprano Denise Duval cantar pela primeira vez a ópera, em 1959, na Salle Favart, em Paris. Um dos integrantes do afamado grupo "Les Six", Poulenc soube incorporar a síncope do jazz para driblar os excessos do romantismo. Cocteau, espécie de porta-voz do grupo, soube explorar o som -e o silêncio- do parceiro. "A relação com o teatro é forte, mas na ópera existe uma diferença. Temos as respostas do marido, Poulenc fala", pondera o diretor André Heller-Lopes.

Sua concepção de "A Voz Humana" é um contraponto às cores de Almodóvar. O cenário é sóbrio -ao lado de uma cama desarrumada, livros pelo chão criam o ambiente. Ao fundo, imensos espelhos refletem a expressão da soprano. A adaptação de Heller-Lopes oferece liberdade à mulher abandonada e a leva a um plano etéreo. "Ela começa a ópera já morta. É um réquiem para um amor. Um amor que não existe mais", ele diz.

Na sequência da obra de Poulenc, o programa traz ainda a "Ópera Aberta para Cantora e Halterofilista", um "happening", concebido, em 1977, pelo compositor Gilberto Mendes. Nele, Lamosa contracena com um halterofilista, propondo diversas esquetes.

"Não há nem mesmo partitura. É uma provocação com a autorreferência das divas da ópera e dos atletas. A cantora é a atleta da voz", diz Lamosa. Do teatro ao "happening", as versões da mesma tragédia só reafirmam a frase de Cocteau. "Nunca quis pertencer a uma escola, porque elas começam em pé e acabam sentadas."

A VOZ HUMANA

Quando Mostra de SP: Qua. (20), às 20h, no Espaço Itaú Frei Caneca; Seg. (25), às 20h40, no Cine Marquise; Qui. (28), às 14h, no Reserva Cultural; Sáb. (30), às 13h30, no Petra Belas Artes

Classificação 18 anos

Elenco Tilda Swinton

Produção Espanha, 2020

Direção Pedro Almodóvar


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