'Piedade' é a melhor obra de Cláudio Assis e retrata sexo com maturidade
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao lançar "Amarelo Manga", de 2002, seu primeiro longa-metragem, o diretor pernambucano Cláudio Assis começou a colecionar prêmios e admiradores. O filme, que logo se tornou cult, indicava alguns temas da predileção do cineasta e formas de os abordar.
Havia ali o olhar cortante sobre Pernambuco, especialmente sobre modos de exploração econômica revestidos de uma modernidade cafona, e o triunfo dos instintos, sobretudo a pulsão sexual que suplanta a moral e qualquer espécie de racionalidade.
"Amarelo Manga" revelava também um diretor capaz de extrair de seu elenco as melhores interpretações, desde que, claro, esses atores tivessem talento para as oferecer. O desempenho soberbo de Matheus Nachtergaele, que participou de todos os longas de Assis, é emblemático nesse sentido.
Por outro lado, esse filme caía vez ou outra na verborragia e, principalmente, numa vontade quase adolescente de causar choque, sem que isso fosse indispensável para a trama. Não raro, a cena pensada para melindrar o público deixava em segundo plano passagens mais elaboradas do filme.
Para o bem e para o mal, "Baixio das Bestas", de 2006, aprofundou essas marcas. Mas vieram "Febre do Rato", de 2011, e "Big Jato", de 2016, filmes que apontavam inflexões. Assis continuava impetuoso e contundente, mas ia se desprendendo dessa rebeldia pueril.
"Piedade", de 2019, quinto longa de ficção de Assis, chega aos cinemas, enfim. É uma evolução desse processo e, portanto, o melhor filme do diretor.
Na fictícia cidade que dá nome ao filme, Dona Carminha --papel de Fernanda Montenegro-- e Omar --papel de Irandhir Santos--, um de seus filhos, tocam o bar Paraíso do Mar, que fica na praia da Saudade. Muito frequentado por turistas no passado, o lugar vive um declínio por causa das águas cada vez mais poluídas pelo avanço da empresa petrolífera Petrogreen e infestada por tubarões.
Inevitável se lembrar do terror dirigido por Steven Spielberg, em 1975, quando se fala em tubarões no cinema. Há, sim, um diálogo entre os filmes, mas é uma relação distante. No drama de Assis, o peixe que afugenta os banhistas surge como face fantasmagórica de múltiplas crises -ambiental, econômica, política, moral.
Do outro lado da cidade, longe do mar, vivem Sandro --papel de Cauã Reymond-- e seu filho, Marlon --papel de Gabriel Leone--, que comandam um cinema pornô. Graças às artimanhas de Aurélio --Nachtergaele--, executivo da Petrogreen que pretende ocupar o terreno onde funciona o Paraíso do Mar, esses dois núcleos se aproximam.
Assis consegue a proeza de conciliar gritos e silêncios. No caso, a indignação dos personagens diante da voracidade da empresa, inclusive jovens ativistas, e as sutilezas de relações familiares mal resolvidas ao longo de décadas.
Interdição talvez seja a palavra-chave de "Piedade". O mar, fétido e perigoso, está interditado, assim como a rede de afetos. O filme se constrói justamente nas tentativas de rompimento dessas barreiras físicas e emocionais.
A maturidade de Assis se expressa também no modo como filma o sexo, mérito a ser compartilhado com Marcelo Durst, diretor de fotografia. Um exemplo é o encontro dos personagens de Nachtergaele e Reymond, em que os corpos expressam êxtase, alívio e carência.
O descaso das políticas federais de incentivo ao cinema, como se viu no incêndio no galpão da Cinemateca, tende a ser um empecilho para a sequência do trabalho de diretores como Assis. A julgar pela beleza e pela força de "Piedade", seria uma tristeza não poder acompanhar seus próximos passos.
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PIEDADE
Quando: Estreia em 5 de agosto
Onde: Nos cinemas
Classificação: 18 anos
Elenco: Cauã Reymond, Fernanda Montenegro e Matheus Nachtergaele
Direção: Cláudio Assis
Avaliação: Muito bom
ASSUNTOS: Arte e Cultura