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O vício é a peste moderna, defende Anna Lembke, autora de 'Nação Dopamina'

Por Folha de São Paulo

17/09/2024 11h30 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quem vive em países mais ricos tem mais tempo livre, renda e opções de lazer. Mas, contrariando tendências anteriores, essas pessoas estão cada vez mais infelizes.

A razão? Para Anna Lembke, psiquiatra que palestrou no ciclo Fronteiras do Pensamento em São Paulo na noite desta segunda-feira (16), é que elas vivem em um mundo sobrecarregado de abundância, onde até atividades saudáveis podem se tornar vícios.

Professora da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, Lembke descreveu o que chamou de "paradoxo da abundância", em que o exagero de oferta de atividades, substâncias e incentivos recompensadores criou uma população em perpétuo déficit de dopamina.

A "droguificação" do cotidiano, argumentou a autora de best-sellers como "Nação Dopamina" e "Nação Tarja Preta", é responsável por criar uma sociedade que, no papel, tem todos os elementos materiais para a felicidade mas se tornou mais triste e deprimida do que as gerações anteriores.

"É um problema sério e sem precedentes. Não se trata de uma questão só individual, mas também social. E que terá de ser tratada por muitos séculos. O vício é a peste moderna", disse a conferencista, referência no tratamento de pacientes com dependência de opioides.

Segundo Lembke, para compreender a infelicidade crescente na população, é preciso primeiro entender os mecanismos que explicam a dependência —e como ela não está apenas ligada ao uso das substâncias tradicionalmente entendidas como viciantes.

"O vício é o uso compulsivo e contínuo de uma substância a despeito dos malefícios causados no usuário", definiu a conferencista. O uso compulsivo pode surgir de cenários inicialmente inofensivos e até positivos.

Tudo se deve ao desequilíbrio biológico causado pelo excesso ou falta da dopamina no corpo humano. Lembke explicou que, desde a descoberta da ligação entre o aumento da substância no cérebro e a sensação de felicidade, os cientistas a identificaram como um dos mecanismos responsáveis por comportamentos viciantes.

Utilizando uma metáfora de gangorra, a americana demonstrou a busca constante do cérebro por um estado de equilíbrio, chamado de homeostase. A chegada da dopamina por estímulos externos desestabiliza esse sistema, gerando sensações prazerosas nos usuários. É então que o organismo, por sua vez, reage gerando dor para reequilibrar a "balança química".

Essa é a base por trás do vício: quanto mais dopamina é recebida pelo cérebro, menos eficaz ela se torna em gerar prazer e mais profundas são as respostas do organismo.

Portanto, em uma sociedade que oferece acesso irrestrito a todo tipo de atividades e estímulos que liberam dopamina —de comidas ultraprocessadas, drogas e pornografia até as redes sociais, o trabalho ou games— os indivíduos passam a viver uma busca desenfreada por mais maneiras de compensar a chegada da dor e da tristeza posterior.

"Se não esperamos esse momento de dor passar, o cérebro não volta para o seu estado de equilíbrio. Aí precisamos de mais drogas, e mais potentes, não para sentir prazer mas para parar de sentir dor. O desejo do organismo para voltar à homeostase governa boa parte da vida biológica", sacramentou a médica. "Por isso é tão difícil resistir a esses vícios."

Lembke usou um exemplo pessoal: já adulta, ela mesma desenvolveu um vício em romances baratos, que levaram à insônia, irritabilidade, ansiedade e uso compulsivo —sintomas clássicos do vício.

E o tratamento passou pelas mesmas bases do aplicado em muitos de seus pacientes: encontrar maneiras para suportar a abstinência até que o cérebro voltasse a seu estado de equilíbrior.

"Não seríamos humanos se não buscássemos dor e prazer. Mas devemos nos manter flexíveis o suficiente na busca pelo prazer, e até da dor, para sempre retomarmos o balanço", concluiu.

O ciclo Fronteiras do Pensamento ainda terá a palestra de Simon Sebag Montefiore e já contou com a participação de Stuart Russell, Muriel Barbery, Yascha Mounk e Nouriel Roubini.


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