Levan Akin reivindica as tradições também para gays e trans em seus filmes
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Entre becos de predinhos coloridos e desbotados, uma senhora chamada Lia procura pela sua sobrinha. Suas roupas escuras e tradicionais chamam a atenção de algumas garotas que ocupam as vielas do bairro de Istambul, conhecido pela prostituição. O estranhamento é mútuo, assim como uma certa afeição disfarçada.
Tekla, a jovem procurada, é uma mulher transgênero que saiu de sua casa, na Geórgia, rumo à capital Turca em busca de liberdade. Ainda que nunca tenha sido aceita pela família, Lia prometeu no leito de morte de sua irmã, mãe de Tekla, que reencontraria a moça e a levaria de volta para casa.
O desencontro geracional e a disputa pelas tradições culturais voltam a ser tema no novo filme de Levan Akin, "Caminhos Cruzados", disponível na Mubi após ficar poucas semanas em cartaz.
O filme anterior de Akin, "E Então Nós Dançamos", contava a jornada de Merab, jovem gay que sonha em ser um dançarino oficial gregoriano, mas enfrenta a resistência de seus professores por não performar a virilidade esperada. Ao mesmo tempo, ele se apaixona por Irakli, seu colega.
O longa foi celebrado quando estreou no Festival de Cannes, em 2019, fora da competição principal, mas gerou revolta entre grupos conservadores na Geórgia, que protestaram contra a sua exibição nos cinemas do país. "Não fiquei tão surpreso porque o ego masculino é frágil", diz Akin, por chamada em vídeo."
"O ponto que quero passar com meu trabalho é que a tradição e a cultura não podem ser apropriadas por conservadores ou tradicionalistas. Elas são minhas tanto quanto suas."
O frenesi causado por "E Então Nós Dançamos", porém, levou o diretor a querer fugir da polarização entre de personagens em "Caminhos Cruzados". Foi assim que surgiu a ideia de narrar a jornada de Lia, que conforme busca pela sobrinha trans percebe que ela própria não se encaixa nos padrões sociais definidos para uma mulher de sua idade.
Isso porque Lia não é casada e tampouco teve filhos. "Na Geórgia, a procriação é a coisa mais importante e mais divina que há", diz o diretor. Mas, ao mesmo tempo em que Lia tenta navegar com segurança por uma sociedade patriarcal, ela própria reproduz discursos preconceituosos aos quais foi submetida desde sempre.
Em determinada cena, por exemplo, ela blasfema, dentro de um ônibus, sobre como as mulheres gregorianas estão perdendo a dignidade, para depois chegar no bairro de prostituição em Istambul e olhar torto para as mulheres, cis e trans, que passavam por ela.
Retratar a prostituição foi uma escolha que surgiu após entrevistas de Akin com algumas mulheres transsexuais, que contaram ao diretor que a rota à Istambul era comum para muitas delas. "Estou apenas filmando o que vejo quando estou lá. Não foi uma escolha dramática ou narrativa. Elas estão ali e são vistas como cidadãs de segunda classe por muitas pessoas."
Como fez em "E Então Nós Dançamos", ao enquadrar os passos rápidos e delicados de Merab, que pingava suor para transmitir a virilidade requerida pela dança tradicional gregoriana, quase como se estivesse lutando contra si mesmo, Akin novamente se apega aos detalhes culturais e cotidianos para submergir quem assiste no contexto de seus personagens.
Dessa vez são os formatos das janelas de vidros coloridos de habitações em Istambul, nos quais Lia entra e sai aflita, a mesa posta pelas prostituas que vivem em comunidade, criando a própria família ou, ainda, na dança, que aparece novamente mas, dessa vez, nos momentos em que Lia mais parece conectada à sua cultura, e não lutando contra ela.
"Quando eu estava crescendo não havia filmes [LGBT] da região de onde sou", diz Akin, que passou a adolescência assistindo às já poucas produções queer existentes, filmadas em sua maioria em países como França e Estados Unidos. "Eu exploro o tema de viver a vida como se deseja, sem dar importância ao que os outros pensam. E isso também é universal."
Caminhos Cruzados
Onde Disponível na Mubi
Classificação 14 anos
Direção Levan Akin
ASSUNTOS: Arte e Cultura