Compartilhe este texto

Exposição de Solange Pessoa faz alquimia entre barroco e surrealismo em São Paulo

Por Folha de São Paulo

30/04/2024 9h30 — em
Arte e Cultura



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um lago de luz, formado por cerca de 20 toneladas de cristais, inunda a galeria Mendes Wood, em São Paulo. Entremeadas à brancura dos minerais, aqui e acolá, em poças brilhantes, nove esculturas arredondadas em prata emergem como pérolas imperfeitas.

Diante da instalação "Deliria Deveras", de Solange Pessoa, o olhar mal mergulha nas arestas e já flutua entre as formas polidas do metal, atraentes como um imã. O jogo entre contrastes não deixa de ser uma expressão barroca da artista mineira. A obra de grande escala conduz o visitante para um passeio estético à beira do sublime.

"Isso aqui é o telúrico metafísico", diz Pessoa em uma conversa ao redor do trabalho. "Eu pensei muito em Murilo Mendes, que é um poeta dos elementos. Tem um poema dele que chama ‘Abismo voador’. Aqui é um subterrâneo que voa, suspende. Tem uma coisa que é do fundo, mas que também é do alto, que eleva".

Se a imagem lembra as de um sonho, não é por acaso. A artista, que produz desde o final dos anos 1980, diz ter um pé no surrealismo. "Não no surrealismo do relógio derretendo, mas naquele mais amplo, que abrange consciência, sexualidade, animismo, nesse caminho", afirma. "Meu trabalho é herdeiro das experiências sensoriais e da fenomenologia".

Sua fala resume, em certo sentido, a ideia da exposição que busca em camadas do subsolo e do inconsciente uma conversa de longos silêncios contemplativos. "Funduras", individual que ocupa todos os espaços expositivos do galpão da galeria no bairro da Barra Funda, é um lugar de profundidades e alquimias.

Como o do próprio nome que batiza a mostra. O termo, conta a artista, ecoa em conversas no interior do Brasil para dizer a extensão calculada a partir da superfície. Mas também remete a dimensões desmedidas. Já o poeta português Herberto Helder comparece como mais um elemento para a amálgama. "Eu vi a palavra várias vezes nos poemas dele, um poeta muito querido, poeta da matéria", diz.

Minerais como pedras, metais e argila, presentes nos trabalhos, ressaltam o diálogo com a materialidade que Pessoa identifica na proximidade com a poesia de Helder.

Ao caminhar pela exposição, o visitante encontra formas escuras que lembram rochas. Mais próximo delas, nota que são esculturas em cerâmica, que preservam até marcas do toque que as moldou. Porém, basta um ajuste no globo ocular para as peças ganharem densidade e contornos de figuras antropomórficas, fechadas em si mesmas, em um silêncio que condena o observador à eterna ignorância de suas essências.

Diante delas, o mistério permanece. Algumas lembram bustos, outras parecem flagrar momentos de indeterminação entre o homem e os animais. Trabalhos com penas e cabelos, materiais que estão na linguagem artística de Pessoa há décadas, lembram a arte plumária indígena ou obras de Tunga (1952-2016), com quem ela reconhece uma forte ligação.

Mas a melhor associação, afirma, está nas tradições do interior de Minas Gerais e nos santos das igrejas barrocas, que usam perucas feitas de cabelos humanos.

Se esse grupo de trabalhos sugere contenção, as telas da série "Solarengas 2" se entregam a uma natureza vibrante. As obras enormes, em laranja radioso, são pintadas com terra do cerrado, de uma região no oeste de Minas. As formas, que por vezes lembram as dos recortes de Henri Matisse, são uma ode ao mundo vegetal. Frutas, galhos, folhas, sementes e paisagens surgem em profusão festiva.

Os motivos vindos do mundo natural ainda aparecem na sequência de telas menores, da série "Frugívoros", pintadas com jenipapo e carvão sobre linho. A execução das imagens conserva algo dos desenhos rupestres, evocando formas que emergem de uma escuridão primordial. Figurações, quem sabe, de um sonho profundo da Terra.

A artista de 62 anos começou a ganhar projeção no circuito da arte há cerca de uma década. Professora aposentada da Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde deu aula a vida toda, Solange Pessoa nunca deixou de produzir, mesmo que suas obras fossem recebidas com estranheza, mas ficou anos sem expor.

"Desenvolvi o meu trabalho em um contexto muito concretista, que é Belo Horizonte, e a arte conceitual não via nada além de si própria. Eles não se interessaram e eu continuei trabalhando. Isso foi ótimo para mim, foi o que me fortificou", diz sem grandes voltas.

Em 2015, a Rubell Family Collection, uma das maiores coleções de arte contemporânea do mundo com acesso público, comprou sua obra "Catedral" (1990-2015). A instalação é uma cascata de cabelo humano coletado pela artista ao longo de décadas em salões de beleza da capital mineira.

A aquisição marcou o início do reconhecimento de sua produção. Em 2022, ela expôs suas criações na Bienal de Veneza e, entre as peças para a mostra, levou esculturas em pedra-sabão, material bastante associado à arquitetura barroca.

Já em "Funduras", Pessoa desdobra suas realizações artísticas com minerais na série "Verdilitas", fusões de bronze com a pedra fuchsita. "As formas são muito simples, mas é muito difícil fazer essa união, é uma coisa quase que impossível", diz. As obras lembram tanto animais marinhos com conchas quanto fragmentos do cosmos, sugerindo o desejo em sua poética de explorar as origens da vida no planeta.

Esse universo referencial ainda engloba o vídeo "Delongas", um registro de João Vargas Penna, no qual a artista faz desenhos em baixo relevo na terra e os preenche com bronze derretido, que aos poucos se solidifica. "O material é a própria transformação, o bronze é da alquimia", afirma.

Ao ouvir a música de Livio Tragtenberg para o filme, algo como um ressonar da Terra, este repórter evoca o "sono rancoroso dos minérios", do poema "A máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade. A artista de Ferros, cidade mineira próxima a Itabira natal do poeta, concorda: "O subsolo tem um silêncio milenar. As coisas que estão ocultas. Aqui, ele vem para a superfície".

EXPOSIÇÃO 'FUNDURAS', DE SOLANGE PESSOA

Quando Seg. a sex, das 11h às 19h; sáb., das 10h às 17h. Até 11.mai.

Onde Galeria Mendes Wood

Preço Grátis


Siga-nos no
O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

ASSUNTOS: Arte e Cultura

+ Arte e Cultura