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Chico Felitti resgata travestis mafiosas que comandaram a prostituição em São Paulo

Por Folha de São Paulo

23/09/2021 17h06 — em
Arte e Cultura



RIBEIRÃO PRETO, SP (FOLHAPRESS) - Jacqueline Blábláblá, Andéa de Mayo e Cristiane Jordan, a Cris Negão, são nomes que o leitor provavelmente não conhece. Eles nunca estiveram, afinal, estampados nas páginas deste ou de outros jornais, de livros de história ou até de inquéritos da polícia e processos judiciais.

Não é difícil, porém, que o leitor já tenha caminhado pelas mesmas ruas do centro de São Paulo onde elas comandavam a prostituição de travestis, entre as décadas de 1970 e 2000.

Era uma época em que a prostituição -ou a viração, como elas chamavam o ofício entre si, inspiradas pelo jargão "se virar"- era um mercado oculto, escondido atrás de hotéis de uma estrela ou pensões que, de pensões e hotéis, só tinham as placas.

Idolatradas e temidas ao mesmo tempo, Jacqueline, Andréa e Cris eram populares, mas, depois de mortas, passaram a cair no esquecimento, não só de pessoas que não fazem parte da comunidade LGBTQIA+, mas até das travestis que hoje "se viram" nas mesmas ruas em que o trio reinava.

No que depender de Chico Felitti, colunista deste jornal, isso está prestes a mudar. Numa escrita marcada pela oralidade, Felitti narra a trajetória do trio no audiolivro "Rainhas da Noite", que chega na próxima quinta-feira, dia 29, ao catálogo da Storytel, um serviço de streaming dedicado a histórias em áudio.

A narração é da atriz Renata Carvalho, conhecida por ter protagonizado a peça "O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu", que provocou a ira de grupos religiosos e virou caso de Justiça ao retratar Jesus como uma mulher transexual.

"Sempre tive curiosidade pelo nome da Jacqueline, o Blábláblá, que é um nome maravilhoso. Eu ouvia muito amigas travestis das antigas falarem sobre Jacqueline, 'a babadeira', e toda sua geração, cujas histórias não chegaram até a gente", diz Felitti.

O audiolivro é mais uma de suas empreitadas entre histórias que só existem no boca a boca. Ele já se debruçou, por exemplo, sobre a vida de personalidades como Ricardo Correa da Silva -que muitos conheciam como Fofão da Augusta-, uma lenda urbana que o jornalista humanizou em "Ricardo e Vânia", seu primeiro livro, publicado em 2019.

É também o caso de outros trabalhos seus, como "A Casa", em que investiga como João de Deus foi de astro a condenado por estupros em série, e "Mulher Maravilha", uma biografia que desconstrói os mitos que Elke Maravilha criou em torno de si -este também um audiolivro da Storytel, mas que em outubro chega às livrarias pela Todavia.

Em "Rainhas da Noite", porém, Felitti trava uma luta contra o que sociólogos começam a chamar de violência arquival -o apagamento de histórias de pessoas que vivem à margem da sociedade. Sem idolatria. As rainhas, afinal, não foram santas. Andréa, por exemplo, não escondia os assassinatos que cometeu -ou que diz ter cometido.

Jacqueline, assassinada a tiros no mesmo dia em que Ayrton Senna morreu, tinha o costume de "mandar um doce" -ou seja, mandar dar uma surra- nas travestis que recusavam trabalhar em seu prostíbulo. Cris, por sua vez, chegou a beber o sangue de um ladrão que ela matou ao sofrer uma tentativa de assalto -ou pelo menos é o que diz a lenda.

Nem por isso elas merecem ter suas histórias apagadas, diz Felitti. Afinal, o próprio livro questiona, quantos empresários, artistas, celebridades de atitudes tão reprováveis quanto têm suas vidas idolatradas na mídia?

"Este livro é uma ode à existência de pessoas que não tinham direito à vida. Não estou dizendo que foram pessoas boas ou ruins, mas que foram extraordinárias por dizerem não ao mundo horrível, de morte e violência, que esperava por elas", diz. "A imensa maioria das pessoas que retrato morreu --não de morte natural, de idade, mas de violência."

Ao contar os feitos de Jacqueline, Andréa e Cris, Felitti também constrói uma narrativa sobre o que significava ser LGBTQIA+ na São Paulo das décadas passadas, onde, por mais que não estivesse determinado no Código Penal, fugir à heteronormatividade levava à cadeia.

Era uma época em que transexuais, travestis e transformistas não eram aceitos nem dentro da própria comunidade, cuja sigla, GLS, incluía até os simpatizantes, mas deixava de fora pessoas T, que eram expulsas dos bares e boates gays que explodiram a partir da década de 1970 no Centro.

Evidentemente, é uma história triste, que relembra como a imprensa tratou o HIV como uma sentença de morte, como um "câncer gay" ou um "castigo de Deus". Mas é também, Felitti faz questão de frisar, uma história que não se restringe à tristeza, à tragédia e a morte, temas que, até pouco tempo atrás, eram no mainstream a única ótica sob a qual integrantes da comunidade LGBTQIA+ eram retratados.

"É importante que as bichas jovens de hoje saibam que a gente teve travestis mafiosas 50 anos atrás, que andavam de Limusine, mandavam o comércio abrir e fechar quando quisessem e davam golpes imobiliários. A vida é muito difícil para quem foge à normatividade, mas também há histórias impressionantes que precisam ser contadas", diz.

RAINHAS DA NOITE

Quando: Disponível na próxima sexta-feira (29)

Autor: Chico Felitti

Editora: Storytel


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