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Rio tem 430 projéteis apreendidos por dia

Por Agência O Globo

23/09/2017 20h09 — em
Rio de Janeiro



Uma única bala pode matar, deixar sequelas, destruir famílias... E, no paiol que a violência transformou o Rio, dimensionar quantas delas ameaçam vidas parece pouco factível, como evidenciou a guerra de rajadas de tiros dos últimos dias na Rocinha. Mas, como um indicativo, só as munições apreendidas pelas forças de segurança no estado, entre janeiro de 2014 e junho deste ano, somaram 548.777, segundo um estudo do Instituto Sou da Paz, que analisou dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). É uma artilharia suficiente para 13 mil disparos por mês ou 430 por dia. Em seu detalhamento, a estatística revela outro aspecto assustador: quase um quarto (123.664 ou 22,53% do total) desses projéteis era de calibre de fuzil — aparato de guerra que se proliferou no cotidiano fluminense, tão letal que leva à morte cerca de 90% de suas vítimas. Um arsenal que, nas mãos dos criminosos, alimenta, além dos confrontos na Rocinha, combates como o que aconteceu, recentemente, no Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho. Faz ressoar estampidos que amedrontam na favela e no asfalto, seja no Dona Marta ou na tentativa de assalto que deixou um bandido morto, terça-feira passada, no Shopping RioSul. E enterra sonhos de inocentes, como Vanessa Vitória dos Santos, de 10 anos, atingida dentro de casa no Complexo do Lins, ou de Sofia Lara, de apenas 2 anos e sete meses, morta enquanto brincava num parquinho em Irajá.

No meio do fogo cruzado, a população fica acuada. Na Rocinha, enquanto bandos de uma mesma facção disputavam o território em tiroteios que duraram horas ininterruptas, seus mais de 69 mil moradores tiveram de conviver a semana toda com toques de recolher. Imagens feitas dentro da favela mostram dezenas de bandidos fortemente armados. Anteontem, uma granada argentina foi lançada contra policiais, mas não explodiu. O comércio e unidades de saúde fecharam, os serviços de transporte público foram interrompidos várias vezes e muita gente não conseguiu sair de casa para o trabalho. Em meio à batalha, a cidade inteira se ressentiu, com o trânsito da Autoestrada Lagoa-Barra e do Túnel Zuzu Angel interrompido.

E apesar do enfrentamento fortemente armado — que culminou com uma intervenção das Forças Armadas —, outro levantamento, esse feito pelo GLOBO com base em informações do ISP, mostra que, antes de a guerra começar, a 11ª DP (Rocinha), junto com a 1ª DP (Praça Mauá), tinha sido a delegacia com menos registros de apreensões de armas na cidade, de janeiro a julho deste ano. Nesse período, foram apenas cinco (dois revólveres, duas pistolas e uma submetralhadora), equivalente a 0,3% das 1.666 armas recuperadas na capital em sete meses. E, embora as imagens dos confrontos tenham mostrado uma proliferação de fuzis com os bandidos da comunidade, nenhum armamento do tipo foi apreendido em sete meses na região.

A Polícia Civil, no entanto, diz que situações de flagrante referentes à 11ªDP são encaminhadas à 14ª DP (Leblon). Mesmo assim, apontam os dados do ISP, esta última delegacia teve 15 armas apreendidas de janeiro a julho, nenhum fuzil. Numa comparação, só a 39ª DP (Pavuna) teve 159 armas recuperadas, 33 delas fuzis. A 34ª DP (Bangu) registrou 143 apreensões, das quais 17 eram de fuzis.

— Pode significar que faltou investigação ou sobrou proteção indevida (aos bandidos). Mas também que as armas na Rocinha estão muito bem escondidas. É uma comunidade cercada de muita mata, com vários locais para esconderijos. De qualquer forma, é um número muito baixo — afirma a antropóloga Alba Zaluar, do Núcleo de Pesquisas das Violências da Uerj, que aponta deficiências no trabalho para impedir que armas e munição cheguem aos bandidos. — É preciso desmantelar as quadrilhas que fazem esse tráfico — completa ela.

Nesse sentido, o estudo do Sou da Paz ressalta que, de 2014 a 2016, houve um crescimento constante nas apreensões de munição: só no ano passado, foram 175.792. Mas, em 2017, embora se observe um recrudescimento da violência, o instituto prevê que essa tendência não se repetirá. Na primeira metade do ano, foram 71.190 recuperadas. Uma queda na proporção, de acordo com a análise, que poderia refletir uma redução das atividades policiais em razão do contingenciamento de recursos no estado provocado pela crise.

— Mas outros órgãos e esferas de governo também precisam atuar. Nosso relatório aponta que 42% da munição nas mãos de criminosos no Rio são de fabricação nacional. O país tem uma única fábrica de munição, a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). É responsabilidade do Exército fiscalizar essa produção. Como parte da munição apreendida tem marcação de lote, é possível rastreá-la — diz Bruno Langeani, coordenador do estudo e gerente da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Sou da Paz.

Ele comemora a criação, este ano, da Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos (Desarme). Langeani destaca operações, com apoio da inteligência, que resultaram na retirada de circulação de grandes quantidades de balas ou armas. Uma delas, da própria Desarme, em junho deste ano, no Aeroporto do Galeão, apreendeu 60 fuzis e 140 projéteis trazidos dos EUA. Também identificou uma quadrilha que, segundo denúncia do Ministério Público Federal, teria traficado, desde 2014, 1.043 armas de fogo e 297 mil balas de calibre restrito dentro de carcaças de aquecedores de piscinas e de bombas d’água.

No mundo do crime, o uso intenso, aliás, dos calibres restritos — exclusivos das Forças Armadas, da Polícia Federal, de atiradores, caçadores e colecionadores autorizados — é mais um aspecto constatado pelo levantamento. Langeani ressalta que os números detectam um aumento preocupante dessas munições no Rio. Em 2014, eram 59% das apreensões. Na primeira metade de 2017, já chegavam a 70%, encontradas sobretudo na cidade do Rio.

O calibre mais apreendido no período analisado foi o 9mm, usado em pistolas e submetralhadoras, com 150.593 balas ou 27,44% do total. Até então, esse calibre era de uso restrito, mas recentemente uma portaria do Comando do Exército liberou o uso particular de pistolas 9mm para policiais de várias forças de segurança do país. Os calibres de fuzil também ficaram nas primeiras posições nesse ranking. O 7,62mm foi o segundo colocado, com 77.232 projéteis ou 14,07%. Enquanto o 5,56mm ficou em quinto, com 46.432 unidades, 8,46% das apreensões.

Delegado titular da Desarme, Fabrício Oliveira afirma que não é novidade o fato de criminosos no Rio terem preferência pelos fuzis. Ele diz que, atualmente, o poder de fogo desses bandos aumentou, com um crescimento do número de armas estrangeiras. As pistolas, destaca, são praticamente todas importadas, muitas delas adaptadas com “kits rajadas”.

— Com esse equipamento, em vez do disparo tiro a tiro, quando o gatilho é apertado, são descarregadas todas as balas. São 30, 50 tiros em sequência. Isso aumenta o risco não só para o alvo que o atirador quer acertar, mas para toda a população. Em nossas ações, temos percebido que grande parte dos mortos é atingida pelos criminosos por disparos dessas pistolas adaptadas, transformadas em espécies de submetralhadoras — diz ele.

A relação entre a quantidade de munição usada e o número de vítimas também destacada pelo estudo do Sou da Paz. Segundo a análise, a apreensão de projéteis segue os locais de maiores apreensões de arma de fogo e de maior letalidade violenta. Cinco Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs) se destacam: do 14º BPM (Bangu), do 41º BPM (Irajá), do 7º BPM (São Gonçalo), do 8º BPM (Campos dos Goytacazes) e do 25º BPM (Araruama). Essa regiões estão entre as dez principais em quantidade de munição e armas apreendidas e também em mortes violentas.

— O fenômeno da violência está muito concentrado no espaço. Com uso de mais informação e menos força, o impacto na redução do poder de fogo dos criminosos poderia ser maior — defende Langeani.


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