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Artigo: Brexit foi a pergunta errada na hora errada

Por Agência O Globo

28/06/2016 3h52 — em
Mundo



“Perplexidade” é certamente o sentimento atual de muita gente que, como eu, viveu na Inglaterra. Ao longo de três felizes anos, concluídos em fevereiro passado, pude ver o que tantos já sabem: Londres é próspera, cosmopolita, dinâmica e bem resolvida. Por que diabos mudar o “status quo” e abandonar a União Europeia? Foi justamente no período em que o país se associou ao projeto europeu de integração que a cidade deixou para trás a lúgubre decadência de décadas passadas para tornar-se o que é hoje — talvez a mais fascinante e uma das mais ricas metrópoles do mundo.

Mas Londres não é o Reino Unido. O vigor dinâmico da capital não é compartilhado em muitos rincões; em particular, no centro-norte pós-industrial da Inglaterra, paira uma densa desesperança em relação ao que o século XXI pode oferecer a cidades e comunidades assentadas em um paradigma que evapora diante de todos: o emprego na indústria, sobretudo a pesada, órfã num mundo em que a economia é comandada por serviços, tecnologia e conhecimento.

Os eleitores dessas regiões, que costumavam seguir o Partido Trabalhista aonde este os levasse, optaram, como os simpatizantes da extrema-direita, pelo voto de protesto — conhecido algoz de referendos e plebiscitos, em que frequentemente o eleitor não vota no que está sendo perguntado, e sim contra quem perguntou.

Aí está um dos maiores pecados do futuro ex-primeiro-ministro David Cameron: fazer a pergunta errada na hora errada. Cameron foi um bom chefe de governo. Mas foi mau estadista.

Para aplacar a indisciplina de uma parcela de seu partido, patologicamente eurofóbica, recorreu a um perigoso antídoto: a hiperdemocracia. Fizera o mesmo no plebiscito sobre a independência da Escócia, em 2014, quando venceu por pouco. A roleta agora foi menos generosa. Cameron entra para a História como aquele que tirou o Reino Unido da Europa. E mais: pode receber de bônus, como um bumerangue que atinge a nuca de quem o lançou, a secessão da Escócia, inconformada com o resultado das urnas, depois de votar folgadamente pela permanência na UE.

Embora passem despercebidas pelo norte pós-industrial e por tristonhas cidades litorâneas onde aposentados temem o imigrante europeu, as vantagens de estar na UE são inúmeras. Uma geração pode transitar, viver e trabalhar sem fronteiras. Cerca de três milhões de empregos no Reino Unido estão vinculados ao comércio com o continente. O mundo científico talvez seja um dos maiores prejudicados: perde fundos da UE, a facilidade de promover pesquisa e desenvolver novas empresas europeias, que, às vezes, envolvem dez, 20 países, sem amarras ou burocracias. O Reino Unido é a segunda nação que mais recebe recursos europeus para ciência e inovação, depois da Alemanha. Mais de 15% dos professores e pesquisadores nas 132 universidades do país são não-britânicos, assim como 5% dos estudantes. Estes últimos contribuem com 2,7 bilhões de libras para a economia britânica e 19 mil empregos. Com o livre trânsito na UE, mais de 200 mil alunos e 20 mil funcionários das suas universidades estudaram ou trabalharam em universidades europeias sob o programa Erasmus, da UE.

Cerca de 60% da renda dos produtores rurais britânicos vêm da Política Agrícola Comum europeia e dos incentivos ambientais do bloco. Metade das exportações vai para Europa, que investe uma média de 26,5 bilhões de libras por ano na economia britânica. O Citibank estima uma retração do PIB de 3 a 4 pontos percentuais nos próximos três anos.

Quando correspondente de O GLOBO em Bruxelas, me convenci de que, apesar da natureza paquidérmica da UE, e das crises posteriores — euro e imigração —, os benefícios para os Estados-membros superam em muito os prejuízos. As diretivas da UE garantem tarifas de telefonia celular razoáveis, sem roaming em todo o continente, impõem à indústria rigorosas normas ambientais e de saúde pública. Protegem como nunca o consumidor e o cidadão comum.

Tudo isso aponta para o alto grau de irracionalidade da escolha do histórico 23 de junho. A conclusão a que se pode chegar é que a Europa, continente de tantos valores e ideias que inspiram o mundo, pode também ser a terra em que, quando a prosperidade escasseia — como nos lugares em que venceu o Brexit — pode vicejar com força a xenofobia, sentimento de que a própria Europa já foi vítima, e de forma tão dolorosa, ao longo de sua História.


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